quarta-feira, 17 de novembro de 2010

O NATAL DE UM FESTEJADO ESCRITOR

"Naquele tempo os REIS MAGOS ainda não existiam (ou sou eu que não me lembro deles) nem havia o costume de armar presépios com a vaca, o burro e o resto da companhia. Pelo menos na nossa casa. Deixava-se à noite o sapato ("o sapatinho") na chaminé, ao lado do fogareiro de petróleo, e na manhã seguinte ia-se ver o que o Menino Jesus lá teria deixado. Sim naquele tempo era o Menino Jesus quem descia pela chaminé, não ficava deitado nas palhinhas, de umbigo ao leu, à espera de que os pastores lhe levassem o leite e o queijo, porque disto, sim, iria precisar para viver, não do ouro-incenso-e-mirra dos magos, que, como se sabe, só lhe trouxeram amargos de boca. O Menino Jesus daquela época ainda era um Menino Jesus que trabalhava, que se esforçava por ser útil à sociedade, enfim, um proletário como tantos outros. Em todo caso, os mais pequenos da casa tínhamos as nossas dúvidas: custava a acreditar que o Menino Jesus estivesse disposto a emporcalhar a brancura de sua veste, descendo e subindo toda noite por paredes cobertas daquela fuligem negra e pegajosa que revestia o interior das chaminés. Talvez porque tivéssemos deixado transparecer por alguma meia palavra este saudável cepticismo, uma noite de Natal os adultos quiseram convencer-nos de que não só existia mesmo, como o tínhamos dentro de casa. Dois deles, deviam ter sido dois, talvez o meu pai e o Antônio Barata, foram para o corredor e começaram a fazer deslizar carrinhos de brinquedo de um extremo a outro, enquanto os que haviam ficado conosco na cozinha diziam: "Estão a ouvir? Estão a ouvir? São os anjos". Eu conhecia aquele corredor como se tivesse nascido nele e nunca me tinha apercebido de qualquer sinal de uma presença angélica quando, por exemplo, firmando-me num lado e no outro com os pés e as mãos, trepava pelas paredes acima até tocar com a cabeça no teto. Lá em cima, anjos ou serafins, nem um para amostra. Passado tempo, estava eu já na adolescência, tentei repetir a habilidade, mas não fui capaz. As pernas haviam-me crescido, as articulações dos tornozelos e dos joelhos tinham-se tornado menos flexíveis, enfim, o peso da idade..." ("As Pequenas Memórias", José Saramago. pp.104, Companhia das Letras).

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