terça-feira, 13 de outubro de 2009

Adeus, Sapé!

Acabo de saber do sobrinho Júlio César que o Sapé não existe mais! E ao dizer-lhe, aliviado até, que afastamos de sobre nós um peso até certo ponto estressante, respondeu-me numa lacrimejante e quase abafada voz: "em parte sim, tio, em parte não!" Foi o bastante para eu cair na real. Em parte sim, falo por mim, porque, residindo há 40 anos no Rio, por mais que sonhasse, impossível era tirar proveito do pedaço de terra que ali herdamos de nossa mãe e de nosso irmão Luiz. E quanto mais o tempo se diluía, mais difícil se tornava ocupar com saudável e gratificante finalidade aquele torrãozinho que era por direito e por escolha um pedaço de nós. Em parte não, e por quê? Faz 70 anos exatamente que o Quive e a mãe compraram o Sapé. A partir de então nosso lar se duplicou, tornando-se com o sobradão dois irmãos gêmeos. Como nossa existência se modificou! A metade do dia passávamos no Sapé. Saíamos do grupo escolar, almoçávamos e... Sapé de sobremesa!  A mãe punha a trouxa de roupa usada na cabeça já embranquecida, a gente carregando o balde de lavagem das criações, um outro irmão com a marmita do Antônio e assim troteando silenciosos rodeando a mãe tomávamos a rua do Vira-Unha, atravessávamos a pinguela do Sô Bismarque, a Santa Casa em construção à nossa direita com a casa do Carlindo à esquerda e depois ainda à direita a casa do Rosa e chegávamos ao Sapé. E nenhum de nós ficava à toa. Varrer a casa, o terreiro, caçar ninhos de galinhas no terreno do Lulu defronte da casa, dar comida para as galinhas e patos e perus e ajudar a tratar dos porcos. Mais à tardinha, molhar as plantas: canteiros de alface, de repolho, de ervilha, de tomate, de couve comum e de  couve-flor, de almeirão, de cenoura, de nabo, de rabanete, de cebolinha e de cebola de cabeça e de alho e de que mais, santo Deus? Debulhar milho. Cuidar dos coelhinhos, habitantes do porão da casa. E de vez em quando, ajudar na busca de alecrim para limpar o forno onde a mãe assava as saborosíssimas quitandas com que nos alimentava. E a mãe ainda achava tempo para fazer polvilho, farinha "de munho"com fubá torrado misturado com nacos de toucinho, que delícia! e o fubá saía do moinho de pedra vizinho do monjolo, tocados pela água que descia da casa do Lulu. Foi no riozinho no fundo do terreno que pesquei o primeiro peixe de minha vida. Era nossa rara distração quando chovia muito e o córrego enchia e a água avermelhava. Mas a gente ficava doido para voltar pra "casa da rua"! E a mãe, findas as tarefas essenciais, se perdendo filósofa a cuidas das rosas e flores várias que enfeitavam as hortaliças, sem nem desconfiar do mal estar da gente que não via a hora de encerrar o expediente. E se era o mês de maio, que dor no coração quando começava a escurecer e nada de regressar para a reza na matriz e para ver as garotas que já paquerávamos no largo, depois da coroação de Nossa Senhora! Sinceramente, eu não gostava do Sapé! Foi, porém, a maneira, estou quase certo, que o Quive e a mãe encontraram para alimentar seus doze filhos criados. Perdoe-me, César, por ter esquecido tudo isto, quando lhe disse que com a venda do pedaço do Sapé que a mim e meus filhos e a Léa Maria tocava tínhamos sacudido um peso dos ombros, sem ouvir os soluços de nossos corações  agradecidos e saudosos! Adeus, Sapé! A ingratidão, que coisa mais feia!

Um comentário:

  1. O império da Mãe e do Quive constava do palácio, ogrande sobradão no centro da cidade, bem como da casa de campo, o Sapé da trabalheira. A duras penas construiram sesu domínios, dos quaiscom certeza, muito se orgulhavam. Como todas as coisas passasgeiras, porém, todo império desaba. Muitos desabam logo, outros demoram muitos anos. O importante, porém, é que a memória de seus criadores não desapareça, nem mesmo a lembrança de seus domínios materiais. Eis a importância da história escrita, dos relatos, das memórias. Tanto meu livro quanto suas belas e pormenorizadas lembranças do Sapé haverão de guardar para a posteridade as imagens de algo que significou muito e que foi o fundamento dos caracteres de uma dúzia de rebentos que passaram por esta vida e que deixaram suas marcas indeléveis pelas vereda que percorreram.

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