segunda-feira, 23 de novembro de 2009

S I N O S D E N A T A L

TATUÍ, Estado de São Paulo, 25/12/1936. Terminada a "Missa do Galo", a família reuniu-se em volta do presépio. E distribuíram-se os presentes. Mas a filha pequena, 12 anos, não pedira ao pai presente de natal. Que entretanto lhe deu uma bomboneira pequenina, de louça barata. A garota desatou alegre a fita cor-de-rosa, lentamente abriu a caixinha, topando encantada com a prenda. Em vez de bombons, porém, encontrou dentro um punhadinho de cinzas. Atinando de imediato com o caso, abraçou-se com o pai que emocionado lhe disse: "Não foi este o presente de natal que você pediu?""Sim, papai, foi este!" Em 1943, aluno do segundo ano no Colégio do Caraça, foi nosso competente professor de história pátria o Padre Francisco Guerra. Conquistou logo de início nossa atenção e interesse pela matéria lecionada, reservando a parte final das aulas para, encantamento de nossa imaginação adolescente, a leitura de páginas referentes aos assuntos estudados. A novidade era que seu autor sabia com "engenho e arte" romancear fatos históricos importantes, daí os títulos de algumas de suas obras: "Maurício de Nassau", "Alma cabocla", "A Os Irmãos Leme", "Bandeira de Fernão Dias", etc. Tal foi nossa admiração por esses livros que se tornou preocupação nossa imitar o estilo solto, diáfano, saltitante do ilustre "imortal" paulistano. Fazia na época uns quatro anos do falecimento do romancista que, "como uma de suas derradeiras despedidas...pede a táboa sobre a qual , sentado, costumava escrever, táboa chã, mas que recebera as confidências de sua pena"("Confiteor"). Três meses antes daquela noite natalina, em outubro de 1936, regressando da igreja, foi ao quarto de sua filha de 12 anos saber como passara a noite. A pequenina estava adoentada. "Papai, eu queria pedir um favor para Papai! Eu queria que Papai rasgasse aquele livro que Papai está escrevendo!" "Por que esse pedido, filha? Por que quer que eu rasgue o meu livro? "Não sei. Há uma coisa aqui dentro que me pede, desde ontem, que Papai não deve publicar aquele livro. E quero tanto que vou propor um negócio para Papai. Papai me dá todos os anos um presente de natal, é o presente que eu mais gosto na minha vida. Neste ano, Papai vai fazer o que eu pedi: rasgar o livro". O livro que se chamaria "O Filho" já estava quase a caminho da editora, apesar dos protestos da esposa que lhe datilografara os originais e lhe condenara o conteúdo bastante pornográfico para a mentalidade da época. "Basta, minha filha, basta! Você ganhou o seu presente de natal". ",E os dois ali no quarto picamos em mil pedaços as trezentas páginas do livro. Logo a seguir, no canto do meu quintal, uma pequena fogueira devorava o montezinho de papeis rasgados. Eu vi, com júbilo, a labareda subir das laudas em tiras. A chama que rompia alegremente do calhamaço como que atiçava um fogareu de contentamento no meu coração. Na minha felicidade, sem que ninguém reparasse, guardei comigo um punhadozinho daquela cinza"("Confiteor"). 26 de dezembro de 1936."Natal bucólico, transcorrido em pleno campo, nesta arredada e quieta chácara em que vivo ( o autor já estava bastante doente). Tudo tão íntimo, aconchegado, lindo. Até a árvore pareceu-me mais bonita que a dos outros anos. E tinha bugigangas como nunca teve. E enfeites de ouro. Lanterninhas e bolas. E laçarotes de toda cor. Uma festa. As crianças receberam o presente que pediram. Só a pequerrucha de 12 anos não pedira presente de natal. Mas o Papai lhe deu uma bomboneira de louça barata, cousa atoa. Encontrou lá dentro, com surpresa, um desenxabido punhado de cinza. Compreendeu imediatamente. Olhou-me com um olhar fulgurante. Olhar em que fuzilava chispa a mais eloquente. Acercou-se apenas de mim, beijou-me e, trêmula, abraçou-me com um abraço apertado. Eu lhe disse a meia voz: Foi este o presente de natal que você pediu, não foi, minha filha? Foi, Papai! E abraçou-me de novo" ("Confiteor"). Dois livros o imortal "PAULO SETÚBAL não viu impressos: "O FILHO", que ajudou a rasgar e queimou, e "CONFITEOR", obra póstuma, cujo derradeiro capítulo traz a marca sábia, santa e elegante do filósofo Padre Leonel Franca (1893-1948), jesuíta, um dos fundadores da PUC do Rio de Janeiro e seu primeiro reitor.

Um comentário:

  1. Bela história esta do grande Paulo Setúbal. Ao lê-la, lembrei-me logo de nossa saudosa mãe e de uma passagem de minha vida, passagem recente e que tem alguma semelhança com o fato relatado por você em seu blog.
    Ao escrever meu livro "Estava Escrito nas Estrelas", houve um momento em que, em meus escrúpulos herdados de minha formação religiosa, julguei que seria minha obrigação desistir de publicar minha obra. Vontade eu não tinha de destruir o que me custara tanto empenho. Eu pensava mesmo é que tinha obrigação, em consciência, de destruir as coisas que eu narrava, a respeito da severidade de nossa mãe. Eu tinha receio de desvalorizar sua imagem, de transformá-la em em personagem carrancuda e malvada. Entretanto, o que saconteceu foi justamente o contrário do que eu temia. Todos os que comentam meu livro comigo são unânimes em
    dizer que Dona Neném foi uma verdadeira heroina, uma mulher batalhadora e digna de todos os elogios, devido a sua firmeza e tenacidade, na maneira de educar os filhos.
    Sinto-me hoje aliviado e feliz, por compreender que, até sem querer, transmiti para a posteridade a imagem da mulher forte, que deve ter legado para nós algumas de suas grandes qualidades.
    Grnade Dona Neném!

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